De ontem e de hoje – O racionamento
por Licínia Quitério
Eu era muito pequena quando a guerra acabou, mas lembro-me bem do “racionamento”, essa palavra que andava de lar em lar, de boca em boca, e que para mim constituía um divertimento diário. Era-me então permitido recortar uns quadradinhos de papel azul-claro onde estava inscrita uma data e um qualquer número que queria dizer “pão”. A minha mãe dizia-me quantos quadradinhos eu devia entregar ao padeiro que nos trazia o pão à porta. Lembro-me do boné dele, do chiar da verga do cesto, do sorriso dele a receber com a sua grande mão os quadradinhos da minha mão pequenina. Cada família recebia um determinado número de senhas que representavam a ração permitida para os géneros alimentícios. Eu só conhecia bem as senhas do pão, mas havia outras, as do açúcar, as da manteiga e não sei que mais. Aquilo para mim era a guerra e podia dizer-se que era um tanto divertido.
Lembro-me bem, até porque eu já sabia ler, de notícias de jornal que falavam de prisioneiros e de bombas e de ouvir pronunciar lá em casa “campos de concentração”, coisas que eu não fazia a mínima ideia o que fossem, mas sei que disso se falava com ar muito triste.
Recordo-me de terem chegado à minha terra uma meninas e os pais delas que tinham estado em Timor e lá tinham sofrido grandes males, como comer cobras, porque outra comida os japoneses não lhes davam, e disso nunca mais me esqueci, de tal modo que durante algum tempo julguei que os habitantes de Timor se chamavam japoneses.
Quando a guerra acabou, o meu pai foi a Lisboa com amigos a um almoço de festa na embaixada americana. Quando voltou vinha muito contente e até tinha fumado um charuto e a minha mãe dizia “que pivete”. Lembro-me muito bem de ele contar que um senhor lá da terra tinha querido ir ao tal almoço e os amigos do meu pai não deixaram, o que eu achei muito esquisito. Só alguns anos depois vim a saber que o senhor tinha sido colaboracionista e estava muito rico porque negociara sucata com os alemães e o meu pai e os amigos não perdoavam essa sujeira.
A guerra acabou há quase oitenta anos. Eu ainda cá estou e de verdade pouco mais aprendi sobre as razões do que aconteceu no mundo quando eu era tão pequena. Talvez só tenha percebido mais um pouco depois de, muito mais tarde, ter visitado Auschwitz e lido Paul Celan. Mesmo assim, por muitos filmes vistos, por muitos livros lidos, por muitas conversas havidas, nunca entenderei as guerras que são tão más e estão sempre a renascer.
Licínia Quitério
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.
A guerra vista pela Infância e nunca entendida. A guerra vista depois de adulta e continuando a não ser entendida. A impossibilidade de alguém com a inteligência e a sensibilidade de Licínia Quitério para entender a desmesura da violência e da crueldade. E tudo isso nos é transmitido com pudor, sem nunca cair nos lugares comuns de uma certa «lamechice», todo o horror e incompreensão filtrados por uma Escrita forte, belíssima e única.
Que beleza de escrita. Ler os horrores vistos pelo olhar de uma criança. Há coisas que nos marcam para a vida.
A escrita de Licínia tão bela, tanto na prosa como na poesia a guerras a nascer a cada passo sem qualquer sentido.
Gostei muito.
Beijinhos